domingo, 23 de dezembro de 2012

Alvará


São Paulo. Mesa de um bar coxinha no Itaim, tarde de um sábado cinzento e abafado de verão. Bares desse tipo são a cara de São Paulo: lotados de filhos de família boa, formados na GV ou na FAAP, bebericando “brejas” e outros drinks, comendo essas coisas que agora gostam de chamar de “finger food”, conhecidos como petiscos lá na minha terra.
Elas conversam despretensiosamente na mesa, sobre tudo e todos. Observadas e cortejadas por alguns caras das mesas ao lado. Que se aproximam. Uma mesa cheia de publicitários, com seus trinta e poucos, amigos há uns 15 anos que se encontram todos os anos nesta mesma época. São bonitos, interessantes e parecem ser bem de vida. Casados. Estão meio bêbados, daquele jeito que deixa os homens xavequeiros de vigésima categoria. Desses que chamam a gente de princesa ou coisa do tipo.
Elas olham as alianças e trocam um olhar de amigas cúmplices, como quem diz “Ok, vamos ver até onde esses babacas vão”. Homem com “alvará” é o tipo mais escroto que existe e apesar de serem muito sem preconceitos ou tabus, sempre tiveram isso claro. “Cara casado é enrosco, não adianta!”, era esse o papo antes deles chegarem, inclusive. Mas resolveram dar trela. Um criativo de uma grande agência e um diretor de marketing de uma grande rede de restaurantes. Cacifes altíssimos. Alianças que brilhavam tal qual os olhos deles para cima das moças solteiras. Conversaram. Muito, sobre tudo, por horas. O bar encheu e esvaziou muitas vezes. Elas continuaram lá, rindo, cruzando pernas e jogando cabelos. Se divertindo. Eles pedindo chopps e soltando galanteios baratos entre um assunto e outro. Se iludindo. Acreditando de verdade que a noite do alvará renderia um motelzinho fora da rotina. Típicos publicitários, típicos paulistanos. Desenvolveram horas de assunto, sobre como esta cidade move o país e como é cruel viver aqui. Sobre como são infelizes no casamento e sobre como a velocidade de São Paulo nos corrompe. Sobre como fomos criados para sermos os melhores, sobre o trânsito da Marginal, sobre não ter filhos porque não teriam tempo para ficar com eles. Sobre como suas esposas, também publicitárias, estavam mais preocupadas em conquistar contas novas de 2 milhões de dólares, do que fazer sexo com eles em uma tarde de sábado chuvosa. Elas ouviam, pacientemente, fingindo algum interesse naquele papo de paulistano mauricinho. Homem é muito fácil de enganar, basta uma gargalhada e um olhar sexy clichê. Publicitários então... porque no fundo, no fundo, todo publicitário acha que é muito desejado.
Ofereceram um after em um dos restaurantes da rede do diretor de marketing. Elas se olharam novamente e "Por que não?", aceitaram. Pediram a conta, brigaram para pagá-la, afinal não eram mulheres de dever conta para ninguém. Eles não permitiram. Já estavam perigosamente bêbados. O que aconteceria se suas esposas o vissem naquela situação? Pagando contas de desconhecidas, contando que elas não davam para eles direito? Cambaleando e balbuciando a placa do carro para o manobrista? Elas se questionaram sobre isso e concluíram: matariam esses filhos da puta. 
Iam seguindo um ao outro, cada um em seu carro. Afinal, ninguém nasceu ontem e uma carona com um inconsequente desses é sentença de morte, ou no mínimo um fora extremamente constrangedor. Saíram com seus carros, entraram na Juscelino. Em tempos de Lei Seca, esses caras seriam presos numa blitz, certamente. No primeiro farol, um pequeno acidente de trânsito. Bateram o SUV blindado de um deles no carro da frente. Aparentemente, nada grave. Mas toda a função de para o carro, descer, olhar... Tempo suficiente para que elas finalmente se livrassem daqueles babacas. Uma ligação “Amiga, eles bateram?” “Sim” “Tá ficando puxado né? Vamos embora?” “Ai, vamos. Casa em 3, 2, 1”. O farol abriu, elas se embrenharam nos carros e sumiram, independentes e livres, como sempre foram. Eles, sem alvará, estão até agora tentando explicar para suas esposas publicitárias renomadas por que chegaram assim em casa.